terça-feira, 26 de outubro de 2010

No Verão Passado















Só tu, sabes ser assim
tão bem.
Sempre adorei
esse teu ar de simplicidade mesclado
nesse teu véu
que usas metropolitano
de moça moderna de cidade.
Desde o nosso primeiro e tão simples
trautear conversado
sentado junto à guia do passeio
no verão passado.
Fomos indo e voltando
no saber dos meses
cigarros e outras estações,
como se das velhas capitais da europa tratássemos.
Tu sabes tão bem
que em pouco ou nada
os anos fizeram alterar
o nosso conceito de amor
nem tampouco
outras convicções.
Tu escrevias um poema assim
só porque existias e respiravas
para além das músicas
que sempre me acompanharam.
Tu sabes tão bem
ser assim
tão simplesmente mulher
e como tão bem te entregas
nessa tamanha simplicidade
de tão bem o saberes ser.

Miguel Pires Cabral

Imagem do filme "Before Sunset", com Eathan Hawke e Helen Delpy

segunda-feira, 18 de outubro de 2010

Um pouco de alegria

Há 20 anos eu era taxista. Era uma vida de cow-boy, sem a prisão de paredes nem a vigilância de patrão. Depressa compreendi que era também uma profissão de grande aprendizagem de vida.
Eu fazia o turno da noite e talvez por isso o meu táxi tornava-se frequentemente num confessionário.
Passageiros sentavam-se atrás, em total anonimato e falavam-me das suas vidas. Encontrei gente cujas vidas me espantaram, outros desgostaram-me, outros entristeceram-me, etc.
Mas nenhuma vida me tocou mais do que aquela que encontrei numa noite de Agosto.
Respondi a uma chamada da central para ir buscar alguém a uma zona recatada da cidade. O mais habitual era tratar-se de alguém vindo de uma festa, ou alguém que tivesse saído de casa após uma discussão ou alguém indo para um turno de trabalho, etc.
Cheguei junto do edifício às 2:30 da madrugada. Uma só luz se via, no rés-do-chão. Nenhum cliente nas proximidades. Nestas circunstâncias, qualquer taxista buzinava uma ou duas vezes, esperava um minuto e partiria se ninguém aparecesse. Eu não o fazia. Sabia o quão importante era um táxi para quem precisa dele.
A não ser quando a situação me parecesse perigosa, eu ia sempre á porta chamar o passageiro. Desta vez pensei o mesmo; podia tratar-se de alguém que precisasse de ajuda. Bati à porta."Só um momento," respondeu uma amigável voz idosa. Ouvi algo ser arrastado pelo chão e após uma pausa longa, a porta abriu-se. Uma senhora, de estatura baixa, aparentando 80 anos, apareceu diante de mim. Vestia como se vivesse nos anos 40, Pela porta entreaberta consegui ver de relance que o apartamento parecia desabitado. Tudo estava coberto por lençóis.
“Pode levar a mala para o carro, por favor”, pediu a senhora.
Assim fiz, após o que regressei para ajudar a senhora. Ela amparou-se no meu braço e dirigimo-nos para o táxi. Ela agradeceu repetidas vezes o que chamou de “amabilidade”.
"Não tem de quê" dizia eu, "estou só a tratar a senhora como gostava que tratassem a minha mãe, por exemplo”.
Quando entramos no táxi ela deu-me um papel com um endereço e disse: “Podemos ir pela baixa da cidade?”.
“Não é o caminho mais próximo”, respondi.
“Oh, eu não tenho pressa. Estou a caminho do asilo”, justificou a senhora.
Olhei pelo retrovisor e vi que os seus olhos reluziam.
"Não tenho família e os médicos dizem que já não me resta muito tempo de vida”, disse ela.
Cuidadosamente desliguei o taxímetro e perguntei: “Que caminho devo então seguir?”.
Durante duas horas conduzi a senhora pela cidade. Mostrou-me o edifício onde trabalhou como operadora de elevador. Passamos no bairro onde vivera após o casamento.
Por vezes pedia para abrandar, em certos locais, e contemplava certos edifícios ou ruas, sem nada dizer.
Quando o clarão da aurora rompia na manhã, ela disse: “Estou cansada, podemos ir”.
Conduzi então para a morada que me tinha dado. Era um edifício do tipo de uma casa de convalescença, com acesso de carro por debaixo do pórtico da entrada. Dois funcionários aproximaram-se, para ajudar a senhora. Parecia que estavam à sua espera. Fui ao porta-bagagens do táxi buscar a mala e levei-a à entrada, onde a senhora já estava, numa cadeira de rodas.
“Quanto lhe devo”, perguntou ela, ao mesmo tempo que deitava a mão à carteira. “Nada”, disse eu,
“O jovem tem que ganhar a vida”, ripostou ela.
“Há mais passageiros”, retorqui e, num gesto instintivo, baixei-me e dei-lhe um abraço.
“Obrigado. Você deu a uma velha mulher um pequeno momento de alegria. Foi muito gentil”.
Dirigi-me para o táxi e atrás de mim a porta grande do edifício bateu. Era o som de uma vida a fechar-se.
Nesse turno não fiz outro serviço. Fiquei pensativo, nostálgico, vagueando sem destino nas ruas daquela manhã citadina. E se aquela mulher tivesse tido o azar de apanhar um taxista carrancudo e hostil?
Aquela acção foi uma das coisas mais importantes que fiz na minha vida. De facto, estamos condicionados a pensar que as grandes acções da nossa vida estão ligadas a grandes momentos, a coisas gigantes e inolvidáveis...
Mas, por vezes, grandes momentos apanham-nos desprevenidos porque passam despercebidos...

Esta é uma história verdadeira de um anónimo americano, traduzida de "Chiken soup for the soul", de T. H Scott

segunda-feira, 11 de outubro de 2010

A METÁFORA DAS ÁRVORES


(...) Sozinho no planalto verde, tão quieto e grande que tocava o céu azul. Ao longe a cidade, de granito negro debaixo do céu cinzento.
A letargia zen foi quebrada no dia em que Elis se instalou na minha área de percepção, o meu quintal de 50 hectares, fugindo à urbe corruptora e depravada. Ela moveu o meu mundo, da terra ao céu, dos pés à alma. Tudo toldou.
E numa brisa quente de Agosto ela foi, para não mais voltar. (...) À medida que se embrenhava na distância a paisagem do planalto foi encoberta pelo azul celeste. Mas o chão, secou. Aqui já não nascem sentimentos. Só se vierem de cima. Do além.
Desci do planalto, virando costas a essa drogada amalgama de mentiras e vaidades que chamam metrópole. Não voltarás? (...).

Carlos Richter in "A árvore dos Corações"

sexta-feira, 1 de outubro de 2010

O construtor de pontes

Era uma vez dois irmãos que viviam em harmonia, em duas quintas juntas, que mais pareciam uma só.
Certo dia entraram em conflito. Foi o primeiro desentendimento sério em 40 anos de vida e lavoura conjunta. A longa colaboração terminou depois de uma forte discussão por causa de pequenos pormenores e grandes palavras de acusação. Seguiram-se semanas de silêncio.
Uma manhã, bateram à porta da casa de um deles, que logo se deparou com um homem que tinha na mão uma caixa de carpinteiro.
"Procuro alguns dias de trabalho", disse o visitante.
"Sim, talvez eu tenha algo para você executar", respondeu o agricultor.
“Está a ver aquela valeta que separa estas duas quintas, a de lá é do meu vizinho. De facto, é do meu irmão mais novo. Na semana passada houve uma discussão entre nós e ele pegou no seu bulldozer e abriu uma vala entre as duas quintas. Foi uma provocação dele, mas eu tenho uma melhor para ele.
Construa-me por favor uma vedação com 5 metros de altura, com aquela madeira além. Assim não terei que o ver mais.”
O carpinteiro disse: "Penso que compreendi bem a situação e acho que poderei conseguir um trabalho que lhe agrade”.
O dono disponibilizou a madeira, deixou o carpinteiro a fazer o seu serviço e foi à cidade tratar de assuntos diversos que lhe ocuparam o resto da manhã e toda a tarde. Quando o sol se pôs o carpinteiro tinha terminado o seu trabalho. Nessa ocasião o dono chegou, mostrando-se incrédulo; os seus olhos arregalaram-se de espanto. Não havia ali nenhuma vedação como ele pedira. Em vez disso estava uma ponte atravessando a vala que separava as duas quintas.
Nesse momento o seu irmão mais novo aproximou-se do outro lado, dizendo: "És um grande amigo, mesmo depois do que eu te disse e te provoquei..."
Os dois selaram novamente a amizade com um aperto de mãos no meio da ponte.
Olharam de seguida para o carpinteiro, que já estava com a caixa de ferramentas no ombro e preparava-se para partir.
“Não, não vá já embora. Fique alguns dias, temos outros projectos para si..:”
“Eu gostava de ficar”, respondeu o carpinteiro, “mas tenho mais pontes para construir. Adeus”.


[Adaptado de “You, Me and Higer Power”, por Scott T.]

Sete de Copas