quarta-feira, 22 de setembro de 2010

A senhora já não mora aqui









Estava o Quicas, pequenote, em idade primária, a frequentar a escola. Eram tempos do Cubillas, do Chico Fininho, dos cromos dos vikings e dos cigarros Kentucky.
A dado passo, dos muitos arrastados e contados entre a casa e a escola, lá estava a senhora, junto ao portão da casa, a escassos metros da escola primária, na rua do Conde do Alento. Ele gostava particularmente das suas faces rosadas e das covinhas que nelas surgiam quando sorria.
Ela dormia pintada, achava o Quicas. Apresentava por vezes os olhos borratados mas sempre, sempre, com um sorriso. O semblante até poderia começar por transparecer tristeza ou melancolia, aqui ou ali, sobretudo quando chovia, mas o sorriso estampava-se no seu rosto ao ver o petiz passar. Tinha uns notavelmente brilhantes olhos azuis que se semicerravam e pestanejavam. Era um alento matinal para uma alma receosa da tenebrosa sala de aulas da Professora Zita.
Todos os dias, ou quase todos, lá estava ela, de roupão e de boquilha prateada com cigarros mais compridos do que aqueles que o Quicas conhecia de fumar com os primos depois da catequese. Quando chovia empunhava um guarda-chuva que mais parecia uma sombrinha e em vez do roupão trajava uma gabardine. E ele pensava que ela estava ali para ele, para lhe dizer bom dia sem falar, para o animar prá sala de aulas. Mas talvez só estivesse à espera da padeira, do ardina, do leiteiro ou de outrem.
Não sabia quem era. Nunca soube. Quando indagou, em casa, responderam que “é uma estrangeira maluca”. E ele não mais perguntou sobre ela. Ele não queria parecer pessoa que se dava com malucas. Ainda não. Essa predilecção viria com a adolescência. Para o Quicas ela permaneceu sempre como “a senhora”.
Um dia a professora Zita não apareceu. Um minuto depois das nove e ela não estava na sala. Impensável! Um dos afilhados atreveu-se a levantar-se da secretária, daquelas de banco pregado à mesa, e em bicos de pés espreitou pela janela. “O carro dela não está lá fora”. Todos correram para as janelas. Incrédulos! E a empregada veio dar a boa nova, a professora Zita estava doente. A régua dos bolos e a cana-da-índia não se fizeram ouvir nessa manhã!
A quebra da rotina deixou a pequenada atónita. O êxtase era geral. Que fazer? Bola, jogar à bola! Fazer fisgas de grampos! Jogar ao espeto. A panóplia de diversões era vasta. Não havia raparigas. Essas estavam na outra sala. Não tiveram a nossa sorte. Mas quem queria saber delas?
O Quicas não foi nesses jogos. Foi para a rua. Pendurou-se no corrimão do gradeamento que separava o passeio da estrada. Exercitou-se desajeitadamente em tentativas de lances de ginástica, daqueles que vira na televisão nos Jogos Olímpicos, na União Soviética. Nesses preparos não parava de fitar a entrada do portão da casa das eras. Porque será que só via aquela misteriosa senhora quando ia para a escola, às nove menos cinco?... Na saída, não a via. Nem ao domingo dava conta dela na missa. Nem nas festas. Nunca lhe ouviu a voz, nem lhe soube o nome.
Naquela manhã de folga escolar seria a única vez que a veria fora do portão. Estava a baloiçar na grade quando um vulto cintilante, com vestido comprido flutuante e escuro, com os ombros e os braços ao léu e um chapéu de aba larga de onde se dependuravam as pontas de um laço cor-de-rosa. Fez-lhe lembrar aquelas actrizes dos filmes antigos que passavam na televisão do Café Central.
Estacou no passeio durante poucos segundos, até à chegada do carro de praça do senhor Ardósio. Ela manteve-se queda até o motorista abrir a porta de trás do lado do passeio, pela qual ela entrou angelicamente. Ao passar pelo Quicas, este esboçou um aceno, que não foi visto pois nem o rosto da misteriosa senhora vislumbrou por detrás do largo chapéu.
No dia seguinte, às nove menos cinco minutos lá estava ela. E assim sucessivamente, com raras excepções. Quando a uma dúzia de metros não a vislumbrava já ao portão, o petiz abrandava ainda mais o passo, quase parando ou parando mesmo, até que recomeçava a caminhada quando dava por ela abeirando-se do portão.
No ano seguinte o Quicas passou para a escola grande. O ciclo. Deixou de frequentar a Rua do Conde do Alento nas horas matinais e por isso nunca mais viu a misteriosa senhora. Nunca mais. Do ciclo para a secundária doutra terra e dali para a faculdade na grande cidade e dali pró estrangeiro em aventuras desventuradas, o petiz fez-se homem e à terra natal voltou.
Trinta anos depois, a casa está devoluta. Abandonada. O portão já quase não se vê. As eras que ornamentavam o muro da escadaria, apoderou-se da entrada.
A senhora já não mora aqui.

Carlos Richter
Louzada, Setembro 2010

terça-feira, 21 de setembro de 2010

from Chas, with love


Desculpa, peço-te, pela mensagem do pombo,
ténue e brusca, vil e atormentada
orada na hora desse ser a extinguir-se de partida para aí;
nas minhas mãos senti-lhe minguar a alma,
no arvoredo da Cordoaria, hoje revisitada.

Hearts full of nothing hovering on you,
as a trader of dreams and flesh with not much to give…
With all given, how could you?
Jewels and plums thrown away
for Bowie, Murphy and stuff.

There you stare, naked, but yet right on your foot,
standing there holding the love seekers
with much to give, so much to give
and death to take.
Naked, but yet so proud,
so gentle,
so true
just as I remind you on my exodus
into my resurrection,
you said on my departure,
"Go! Go, Chas! Please! I will not follow…"
and i went away, to the woods, to my peageons,
my unconditional friends
far from the vomiting city lights
and never looked back
i knew you would not kill me;

E a árvore secou, nela vivendo pombos
E corações perdidos, partidos, lá ficaram
não o meu, não o meu... oh Laide!...

Carlos Richter

Louzada, 02Setembro2010_02:16 AM

segunda-feira, 20 de setembro de 2010

my hero



It is Thursday. I hate Thursday. Today, multitudes of parents and children make long trips in order to arrive at this destination ... hell. It is a crowded and noisy place. It is a place where people do not smile, a place where pain and fear lurk around every corner. I exit the elevator on the fourth floor, turn the far-too-familiar corner, and sit in the uncomfortable chair. People are all around me, yet I am alone. Although my journey has just begun for today, it is not an unfamiliar one. I have been here many times before. Twenty-one grooves in each tile. I have counted them often. I settle myself in my chair because I know it may be some time before my name is called. Suddenly, I hear a strange sound. It is a laugh. I can hardly believe it, for no one laughs on Thursday. Thursday is chemo day on 4B.
I scan the crowded reception area, looking for the source of the laughter. I note child after child, parent after parent. They all look the same - tired and frightened. I am certain each is thinking the same thought: Why is the treatment worse than the disease? My eyes lock on one particular mother who is holding her baby, a boy of about eight months. The laugh is his. He is bouncing on his mother's knee. It is obvious this is the child's favorite game. The mother's face is one big smile. She relishes the brief moments of happiness in her son's short life. She realizes it may be a while before he has the strength to smile again. He, too, has been chosen to suffer an unfair and uncertain fate. My eyes fill with tears.
I shift in my seat to get a better view of the baby. I stare at his small, bald head. Baldness is not unusual in an infant, but I know why he is hairless. Suddenly I become angry with myself. I despise it when people stare at me; however, here I am sharing the stares I abhor.
I shift my weight once again and sink more deeply into the groove of my chair. A rush of emotions - anger, fear, sadness, pity - surge through me. I remain deeply engrossed in my thoughts for a long time. A booming voice interrupts my reverie. It is the nurse summoning mother and baby into hell. Simultaneously the bouncing and laughing cease. The mother picks up her son. As they walk past me, I look at the baby once more. He is completely calm. His eyes are bright and there is an expression of complete trust on his tiny face. I know that I will never forget that expression.
This is but one of many Thursdays. However, on this particular Thursday, many months into a seemingly endless series of treatments, I learned a lesson from a little baby. He changed my life. He taught me that anger, tears and sadness are only for those who have given up. He also taught me to trust. This I will carry with me always. Today, my little hero is doing fine. His last treatment is in sight and his future looks bright. I can honestly say that I am a little surprised. That bright-eyed baby appeared so pale and sick that day. However, that was before I learned to trust.
Everyone, some sooner than others, must endure his or her own personal "hell on earth." It is important to keep searching for the small joys, although they are sometimes the most elusive. Trust that these joys will appear, sometimes unexpectedly, and often in life's darkest moments ... for instance, in the smile on a baby's face.


by Katie Gillfrom Chicken Soup for the Surviving Soul © 1996 by Jack Canfield, Mark Victor Hansen, Patty Aubery & Nancy Mitchell, R.N.

Sete de Copas