Estava o Quicas, pequenote, em idade primária, a frequentar a escola. Eram tempos do Cubillas, do Chico Fininho, dos cromos dos vikings e dos cigarros Kentucky.
A dado passo, dos muitos arrastados e contados entre a casa e a escola, lá estava a senhora, junto ao portão da casa, a escassos metros da escola primária, na rua do Conde do Alento. Ele gostava particularmente das suas faces rosadas e das covinhas que nelas surgiam quando sorria.
Ela dormia pintada, achava o Quicas. Apresentava por vezes os olhos borratados mas sempre, sempre, com um sorriso. O semblante até poderia começar por transparecer tristeza ou melancolia, aqui ou ali, sobretudo quando chovia, mas o sorriso estampava-se no seu rosto ao ver o petiz passar. Tinha uns notavelmente brilhantes olhos azuis que se semicerravam e pestanejavam. Era um alento matinal para uma alma receosa da tenebrosa sala de aulas da Professora Zita.
Todos os dias, ou quase todos, lá estava ela, de roupão e de boquilha prateada com cigarros mais compridos do que aqueles que o Quicas conhecia de fumar com os primos depois da catequese. Quando chovia empunhava um guarda-chuva que mais parecia uma sombrinha e em vez do roupão trajava uma gabardine. E ele pensava que ela estava ali para ele, para lhe dizer bom dia sem falar, para o animar prá sala de aulas. Mas talvez só estivesse à espera da padeira, do ardina, do leiteiro ou de outrem.
Não sabia quem era. Nunca soube. Quando indagou, em casa, responderam que “é uma estrangeira maluca”. E ele não mais perguntou sobre ela. Ele não queria parecer pessoa que se dava com malucas. Ainda não. Essa predilecção viria com a adolescência. Para o Quicas ela permaneceu sempre como “a senhora”.
Um dia a professora Zita não apareceu. Um minuto depois das nove e ela não estava na sala. Impensável! Um dos afilhados atreveu-se a levantar-se da secretária, daquelas de banco pregado à mesa, e em bicos de pés espreitou pela janela. “O carro dela não está lá fora”. Todos correram para as janelas. Incrédulos! E a empregada veio dar a boa nova, a professora Zita estava doente. A régua dos bolos e a cana-da-índia não se fizeram ouvir nessa manhã!
A quebra da rotina deixou a pequenada atónita. O êxtase era geral. Que fazer? Bola, jogar à bola! Fazer fisgas de grampos! Jogar ao espeto. A panóplia de diversões era vasta. Não havia raparigas. Essas estavam na outra sala. Não tiveram a nossa sorte. Mas quem queria saber delas?
O Quicas não foi nesses jogos. Foi para a rua. Pendurou-se no corrimão do gradeamento que separava o passeio da estrada. Exercitou-se desajeitadamente em tentativas de lances de ginástica, daqueles que vira na televisão nos Jogos Olímpicos, na União Soviética. Nesses preparos não parava de fitar a entrada do portão da casa das eras. Porque será que só via aquela misteriosa senhora quando ia para a escola, às nove menos cinco?... Na saída, não a via. Nem ao domingo dava conta dela na missa. Nem nas festas. Nunca lhe ouviu a voz, nem lhe soube o nome.
Naquela manhã de folga escolar seria a única vez que a veria fora do portão. Estava a baloiçar na grade quando um vulto cintilante, com vestido comprido flutuante e escuro, com os ombros e os braços ao léu e um chapéu de aba larga de onde se dependuravam as pontas de um laço cor-de-rosa. Fez-lhe lembrar aquelas actrizes dos filmes antigos que passavam na televisão do Café Central.
Estacou no passeio durante poucos segundos, até à chegada do carro de praça do senhor Ardósio. Ela manteve-se queda até o motorista abrir a porta de trás do lado do passeio, pela qual ela entrou angelicamente. Ao passar pelo Quicas, este esboçou um aceno, que não foi visto pois nem o rosto da misteriosa senhora vislumbrou por detrás do largo chapéu.
No dia seguinte, às nove menos cinco minutos lá estava ela. E assim sucessivamente, com raras excepções. Quando a uma dúzia de metros não a vislumbrava já ao portão, o petiz abrandava ainda mais o passo, quase parando ou parando mesmo, até que recomeçava a caminhada quando dava por ela abeirando-se do portão.
No ano seguinte o Quicas passou para a escola grande. O ciclo. Deixou de frequentar a Rua do Conde do Alento nas horas matinais e por isso nunca mais viu a misteriosa senhora. Nunca mais. Do ciclo para a secundária doutra terra e dali para a faculdade na grande cidade e dali pró estrangeiro em aventuras desventuradas, o petiz fez-se homem e à terra natal voltou.
Trinta anos depois, a casa está devoluta. Abandonada. O portão já quase não se vê. As eras que ornamentavam o muro da escadaria, apoderou-se da entrada.
A senhora já não mora aqui.
Carlos Richter
Louzada, Setembro 2010
A dado passo, dos muitos arrastados e contados entre a casa e a escola, lá estava a senhora, junto ao portão da casa, a escassos metros da escola primária, na rua do Conde do Alento. Ele gostava particularmente das suas faces rosadas e das covinhas que nelas surgiam quando sorria.
Ela dormia pintada, achava o Quicas. Apresentava por vezes os olhos borratados mas sempre, sempre, com um sorriso. O semblante até poderia começar por transparecer tristeza ou melancolia, aqui ou ali, sobretudo quando chovia, mas o sorriso estampava-se no seu rosto ao ver o petiz passar. Tinha uns notavelmente brilhantes olhos azuis que se semicerravam e pestanejavam. Era um alento matinal para uma alma receosa da tenebrosa sala de aulas da Professora Zita.
Todos os dias, ou quase todos, lá estava ela, de roupão e de boquilha prateada com cigarros mais compridos do que aqueles que o Quicas conhecia de fumar com os primos depois da catequese. Quando chovia empunhava um guarda-chuva que mais parecia uma sombrinha e em vez do roupão trajava uma gabardine. E ele pensava que ela estava ali para ele, para lhe dizer bom dia sem falar, para o animar prá sala de aulas. Mas talvez só estivesse à espera da padeira, do ardina, do leiteiro ou de outrem.
Não sabia quem era. Nunca soube. Quando indagou, em casa, responderam que “é uma estrangeira maluca”. E ele não mais perguntou sobre ela. Ele não queria parecer pessoa que se dava com malucas. Ainda não. Essa predilecção viria com a adolescência. Para o Quicas ela permaneceu sempre como “a senhora”.
Um dia a professora Zita não apareceu. Um minuto depois das nove e ela não estava na sala. Impensável! Um dos afilhados atreveu-se a levantar-se da secretária, daquelas de banco pregado à mesa, e em bicos de pés espreitou pela janela. “O carro dela não está lá fora”. Todos correram para as janelas. Incrédulos! E a empregada veio dar a boa nova, a professora Zita estava doente. A régua dos bolos e a cana-da-índia não se fizeram ouvir nessa manhã!
A quebra da rotina deixou a pequenada atónita. O êxtase era geral. Que fazer? Bola, jogar à bola! Fazer fisgas de grampos! Jogar ao espeto. A panóplia de diversões era vasta. Não havia raparigas. Essas estavam na outra sala. Não tiveram a nossa sorte. Mas quem queria saber delas?
O Quicas não foi nesses jogos. Foi para a rua. Pendurou-se no corrimão do gradeamento que separava o passeio da estrada. Exercitou-se desajeitadamente em tentativas de lances de ginástica, daqueles que vira na televisão nos Jogos Olímpicos, na União Soviética. Nesses preparos não parava de fitar a entrada do portão da casa das eras. Porque será que só via aquela misteriosa senhora quando ia para a escola, às nove menos cinco?... Na saída, não a via. Nem ao domingo dava conta dela na missa. Nem nas festas. Nunca lhe ouviu a voz, nem lhe soube o nome.
Naquela manhã de folga escolar seria a única vez que a veria fora do portão. Estava a baloiçar na grade quando um vulto cintilante, com vestido comprido flutuante e escuro, com os ombros e os braços ao léu e um chapéu de aba larga de onde se dependuravam as pontas de um laço cor-de-rosa. Fez-lhe lembrar aquelas actrizes dos filmes antigos que passavam na televisão do Café Central.
Estacou no passeio durante poucos segundos, até à chegada do carro de praça do senhor Ardósio. Ela manteve-se queda até o motorista abrir a porta de trás do lado do passeio, pela qual ela entrou angelicamente. Ao passar pelo Quicas, este esboçou um aceno, que não foi visto pois nem o rosto da misteriosa senhora vislumbrou por detrás do largo chapéu.
No dia seguinte, às nove menos cinco minutos lá estava ela. E assim sucessivamente, com raras excepções. Quando a uma dúzia de metros não a vislumbrava já ao portão, o petiz abrandava ainda mais o passo, quase parando ou parando mesmo, até que recomeçava a caminhada quando dava por ela abeirando-se do portão.
No ano seguinte o Quicas passou para a escola grande. O ciclo. Deixou de frequentar a Rua do Conde do Alento nas horas matinais e por isso nunca mais viu a misteriosa senhora. Nunca mais. Do ciclo para a secundária doutra terra e dali para a faculdade na grande cidade e dali pró estrangeiro em aventuras desventuradas, o petiz fez-se homem e à terra natal voltou.
Trinta anos depois, a casa está devoluta. Abandonada. O portão já quase não se vê. As eras que ornamentavam o muro da escadaria, apoderou-se da entrada.
A senhora já não mora aqui.
Carlos Richter
Louzada, Setembro 2010